quarta-feira, 20 de maio de 2009

' A explicação se achava ali: dois seres atirados à voragem de um acontecimento excepcional, e subitamente detido - ela, crispada em seu último gesto de agonia, eu, de pé ainda, sabia Deus até quando, o corpo ainda vibrando ao derradeiro eco da experiência. Nada mais apetecia senão vaga pelas salas e corredores, tão tristes quanto uma cena de que houvesse desertado o ator principal - e todo o cansaço dos últimos dias apoderava-se do meu espírito, e a sensação do vazio me dominava, não um vazio simples, mas esse nada total que substitui de repente, e de modo irremissível, tudo o que em nós significou impulso e vibração. Cego, com gestos manobrados por uma vontade que não me pertencia, abria as portas, debruçava-me às janelas, atravessava quartos: a casa não existia mais.
Sabia disto, e qualquer consolo me era indiferente, nenhuma palavra de afeto ou de revolta poderia me atingir. Como um caldeirão já retirado do fogo, mas em cujo fundo ainda fervem e fumegam os detritos em mistura, o que me dava alento eram os restos daquele período que eu acabara de viver. No entanto, como movido por uma força que mal acabara de repontar em meu ser, um ou duas vezes me aproximei da sala em que ela jazia, entreabri a porta, olhei de longe o que se passava. Tudo era de uma repugnante banalidade: dir-se-ia a mesma cena que estava acostumado a ver desde a infância, caso não a transfigurasse, como um sopro potente, invencível, esse hálito sobrenatural que percorre todo ambiente tocado pela presença de um cadáver. Da mesa da sala de jantar, que já servira em sua longa vida para tantas refeições em comum, para tantas reuniões e concílios de família - ela mesma. Nina, quantas vezes não fora julgada e dissecada sobre aquelas tábuas? - haviam feito uma, essa provisória. Nos cantos, dispostas por essas mãos que a pressa inventa exatamente para momentos semelhantes, quatro velas solitárias. Velas comuns, recendendo a comércio barato, provavelmente vindas do fundo de alguma gaveta esquecida.
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Crônicas da casa assassinada - Lúcio Cardoso

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