quinta-feira, 27 de maio de 2010

Caio Fernando.


''...Menos pela cicatriz deixada, uma feridantiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva. Tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de ''atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais'', nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara.

Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo, sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo esses dois portos gelados da solidão é vera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o eterno do perecível, loucos. Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções.


Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora.
Para que o protejam, para que sintam falta.
Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços,
sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável.
Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você.
Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar
em você num lugar improvável como esse.
Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo.
Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.

Acabei ligando para alguém, pedi paciência, chorei, contei, ouvi. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência. E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. Sem que se consiga controlar. Essa minha quase aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, e não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica erros - e saber viver implica em não ver esses erros, em suavizá-los e distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja ameaçado.
No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Esperei o gesto desapercebido que mudaria tudo de rumo. Novamente. Um impluso vital. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, como na última cena, mas eu vou embora sozinho e quando chega essa hora da noite de balada eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.''
(Textos de Caio Fernando, adaptados.)

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